“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas."
Foi assim, lendo em português e inglês a famosa citação da escritora americana negra, feminista e gay Audre Lorde, que a vereadora Marielle Franco encerrou sua participação no debate Jovens Negras Movendo as Estruturas, organizado pelo seu partido, o PSOL, e que acabara de mediar na noite desta quarta.
"Vamo que vamo, vamo junto ocupar tudo (sic)", se despediu. Minutos depois, seria assassinada com quatro tiros na cabeça após deixar a Casa das Pretas, espaço coletivo de mulheres negras na Lapa, no centro do Rio.
De caderninho e celular na mão, com o qual interagia com o público que assistia o evento via transmissão em sua página no Facebook, Marielle contou que havia escolhido essa frase de Lorde para um trabalho de uma aula de inglês – a tarefa pedia que ela citasse alguma mulher que tinha como referência.
Esse exercício a fez lembrar, disse, como a autoidentificação é fundamental. "O lugar de mulher, mulher negra, bissexual, agora estou casada com uma mulher, mas tenho uma filha. Dessas muitas representações a gente vai aprendendo, conhecendo e estudando mais."
Antes de deixar a Casa das Pretas, a vereadora, criada na favela da Maré, pensou até em ir tomar uma cerveja com suas companheiras de bate-papo. No entanto, o cansaço venceu, e ela desistiu do programa.
"Quando acabou o debate nos abraçamos muito, tiramos fotos, e a Marielle sugeriu que a gente fosse tomar uma cerveja, a gente estava na Lapa (bairro boêmio). Mas eu desisti, queria ir pra casa, ela desistiu também", conta a cineasta e produtora audiovisual Aline Lourena, sua colega de debate, à BBC Brasil.
"Ela havia tido um dia complicado na Câmara, comentou sobre algum veto do prefeito. Chegou mais de uma hora atrasada ao debate por causa disso e pediu desculpas", lembra a escritora Ana Paula Lisboa. No dia anterior, Marcello Crivella havia vetado um projeto que obrigaria a Prefeitura do Rio de Janeiro a divulgar o fluxo de caixa da cidade.
Marcado para as 18h, o debate começou pouco depois das 19h justamente para esperá-la, e durou cerca de duas horas.
Ana Paula , ao contrário das outras, não desistiu da cervejinha. Quando estava em um bar próximo dali, com outras pessoas que participaram do evento, recebeu pelo WhatsApp a notícia do crime, ocorrido às 21h30.
"Achei que era fake news . A gente tinha se despedido havia meia hora. Aí fui ligar para o pessoal do PSOL, e eles confirmaram."
Enquanto Marielle ia embora, um carro emparelhou o veículo onde estava. Ela e o motorista, Anderson Pedro Gomes, foram assassinados a tiros, e uma assessora teve ferimentos leves causados pelos estilhaços. Os criminosos fugiram sem levar nada.
Lugar de fala
Marielle havia acabado de debater, por quase duas horas, questões como ativismo e empreendedorismo com quatro mulheres negras que trabalham com comunicação. Além de Aline Lourena, coordenadora do coletivo Az_Pretaz - Mulheres Negras e Indígenas da Comunicação e da Tecnologia, e Ana Paula Lisboa, participaram a rapper Hellen N'Zinga e a publicitária Moara Valle.
O evento fazia parte de uma ação chamada 21 dias de Ativismo Contra o Racismo, em curso no Rio.
Ao iniciar o debate, Marielle falou da importância do ativismo. "O mandato de uma mulher negra, favelada, periférica, precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem está fazendo para nos fortalecer naquele lugar onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê. A negação é o que eles apresentam como nosso perfil", disse.
"Ter a nossa casa (a Casa das Pretas), ter o nosso lugar, ter o nosso período, ter o nosso lugar de resistência, daí fazer esse evento no bojo das atividades do 21 dias de Ativismo. A gente sabe que a gente tá ativa, tá militando, tá resistindo o tempo todo. Mas com alguns períodos onde a gente se fortalece na luta."
plateia, formada majoritariamente por mulheres jovens e negras, chamou a atenção da vereadora pelo fato de muitas ali serem universitárias. "Ela contou que, quando entrou na faculdade só havia ela e mais uma mulher negra no curso de Ciências Sociais da PUC (do Rio)", lembra Aline Lourena, emocionada.
No bate-papo, a vereadora relembrou da época em que ingressou na universidade, após fazer um curso pré-vestibular na favela da Maré. Contou que a primeira "briga" que arrumou foi com um professor que insistia em passar a bibliografia em inglês, que "tentava impor" uma língua. "Eu era zerada em inglês, tinha vindo da Maré."
E falou de como sua identidade foi sendo construída ali dentro.
"Quando eu chego na PUC em 2002, a minha perspectiva era a da mulher favelada, do pertencimento de quem passou pela Maré, desse lugar do 'mareense', do favelado, de uma potência, de uma disputa daquele corpo que vou ocupar. Sim, porque eu sou a favelada e aquele lugar do ensino de qualidade também era meu. Mas eu não tinha autoidentificação nem o lugar da mulher negra favelada. Essa é uma construção que vai se formando."
Ana Paula Lisboa lembra que o tom da conversa foi sempre otimista, e que Marielle estava feliz.
"Foi uma conversa proveitosa, estávamos num momento de celebração, de falar menos da dor e mais de coisas boas sendo feitas pelas mulheres", fala. "E antes de ir embora ela agradeceu todo mundo que participou, fez o evento. Ela tinha sempre essa questão do coletivo, de agradecer."
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